Escritos num velho álbum

23-12-2013 11:33

 

Affonso Romano de Sant’Anna

Nos meus tempos de ginásio, sobretudo as colegas, faziam passar um álbum de recordações, onde cada um deveria escrever um poema ou algo afetivamente relevante. Será que isto ainda existe?

Há algum tempo chegou-me um álbum muito especial. Uma leitora, descendente da família Vieira Souto- cuja linhagem passa pelo Patriarca da Independência- José Bonifácio, pedia-me para escrever algo nesse verdadeiro relicário, onde havia textos autógrafos que começavam com Olavo Bilac, Machado de Assis, Coelho Neto, Osório Duque Estrada , Arthur Azevedo e vem até Carlos Drummond de Andrade, José Mauro de Vasconcelos, Pedro Nava, Artur da Távola, Nelson Rodrigues, isto além de desenhos de Tarsila do Amaral e Agostinelli.

Uma preciosidade. Naquelas páginas o que cada um depositou no espaço em branco que lhe era dado. A página como suporte e cada qual com a sua angústia, ironia, desconversa e delicadeza.

São fragmentos.

Espelhos partidos.

Egos refletidos.

E possivelmente instantes da história não apenas pessoal, mas nacional.

Machado de Assis, machadianamente, desconversa gentilmente: “Receba V. Exa. os protestos de meu grande respeito e admiração. Assim acabam as cartas; assim devem começar e acabar os autores velhos”.

Bilac refere-se à “Dama hospitaleira” do álbum que tem “a graça e a bondade da Terra Brasileira”. Coelho Neto faz um texto que poderia ser considerado formalmente um poema pelos modernistas, que combateu:

“A pressa…!

Vive-se hoje?

Temos apenas a noção da vida.

O infante que nasce é como a flecha despedida do arco sobre o alvo: o túmulo- trajetória é a vida”.

Também Artur Azevedo e Osório Duque Estrada vão brincando com seus textos, até que dando um pulo da Velha República para os tempos da última ditadura, surpreendem-nos duas páginas de Carlos Lacerda, escritas em 1969, onde considerando a história daqueles dias, amarguradamente, diz que “Numa época hoje de submissões e injustiças, o banido dentro da própria pátria é lembrado”. Ao final, acrescenta, quase à maneira do General Figueiredo que também pediu para que o esquecessem: “Gostaria que todos me esquecessem de vez, para não sofrer melancolias e novas decepções, não coletar amarguras, não ter queixas nem recriminações”.

Contrastando com essas palavras, surgem as de Juscelino, ele mesmo vítima de Lacerda e que naquela época também já estava não apenas cassado, mas expulso do país.Estranho e fascinante personagem esse JK. Tinha uma doença incurável: o otimismo. Otimismo e generosidade que estavam na raiz do melhor período de nossa história republicana.

Ele começa dizendo: “Em 1965, quando me encontrava exilado na França, visitei Amboise, que Leonardo da Vinci imotalizaria, nela residindo nos últimos tempos de sua vida, numa casa que o governo francês conserva com carinho. Recebido na prefeitura da multisecular cidade, fui convidado a assinar um livro de visitas que datava de cinco séculos e em cujas páginas se encontravam várias assinaturas de reis, de Leonado da Vinci e de outras eminentes figuras do mundo”.

“Encontro-me, agora, em idêntica situação”- continuava o presidente, dizendo de sua emoção diante desse álbum. E, curiosamente, o seu otimismo estava ligado a uma incessante visão da história, pois tendo começado suas palavras refazendo sua história num outro livro europeu, nesse pula para a história brasileira, cita o Patriarca da Independência, que em 1822 referiu-se à construção da nova capital, “no mesmo sítio em que hoje se levanta e sob a legenda do mesmo nome” a Brasília que JK ergueu.

É um texto acidental, mas significativo. A história de repente invade um texto ocasional num álbum como invade também uma crõnica de jornal.

Está lá também um texto de Nelson Rodrigues, que mais parece de Manuel Bandeira: “Tens a alma cansada, tão cansada quanto uma estrela ao amanhecer”.

O álbum que era folheado a princípio com curiosidade apenas, depois, com surpresa, suscita uma inevitável gravidade. Uma página em branco é mais que uma página em branco. É um pacto.E um desafio. Então, escrevo:

 

Cada texto

o seu contexto

Cada letra

os arabescos

Cada folha

outro dia

desfolhado

outra grafia

Cada página

o branco do destino

com rasuras

desatinos

Cada qual

com sua pena

moderna e antiga

Cada qual

com sua tinta

íntima

escorrida

Cada escrita

uma roupa

na pele

da página

despida.

 

 

30.05. 2004 Estado de Minas.Correio Braziliense

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